Por Regis Tadeu
O ótimo escritor Nick Hornby –sim, aquele mesmo, o autor do livro Alta Fidelidade – disse certa vez que “a juventude é uma qualidade não muito diferente de saúde: é encontrada em maior abundância entre os jovens, mas todos nós precisamos ter acesso a ela”. Também são inegáveis os inúmeros casos de excelentes músicos que acabaram se tornando retratos contundentes do modo como certos artistas se tornam pálidas e patéticas autocaricaturas. É duro perceber que o sentimento que temos por pessoas que admiramos no passado podem se transformar não em raiva, mas em tédio e, pior, em vergonha. E a questão da “juventude” não me sai da cabeça…
Tal reflexão me veio à mente depois de presenciar uma das mais impressionantes experiências que tive até hoje: o show que Jeff Beck fez semana passada na Via Funchal, em São Paulo.
Confesso que minha expectativa não era lá muito alta, já que Beck vinha ao Brasil com a turnê que promove seu mais recente e fraquíssimo disco, Emotion & Commotion. Em compensação, tinha ainda na memória a arrasadora apresentação que ele havia feito doze anos atrás em uma das edições do finado festival Free Jazz.
Primeiro, a surpresa em ver o batera Narada Michael Walden substituindo o lendário Vinnie Colaiuta e a baixista Rhonda Smith no lugar da jovem Tal Wilkenfeld, ambos ao lado do tímido e eficiente tecladista Jason Rebello. Depois, surgindo no palco com a tranqüilidade e descontração que só os veteranos que nada mais tem a provar possuem, Beck logo de cara deixou todo mundo com o queixo batendo nos sapatos com a pureza cristalina do timbre de seu instrumento – uma sensação que se estendeu ao longo de toda a apresentação. Todo mundo na platéia que tocava algum instrumento – qualquer um – fez a mesma pergunta: como ele consegue tirar este som com dois pedaizinhos e um wah-wah?
A linguagem musical de Beck inclui tudo aquilo que faz um músico receber o adjetivo de “perfeito”. Seu senso rítmico ao solar beira o espantoso, como em “Led Boots”, “Big Block”
e “Stratus” ,
a sensacional composição do extraordinário baterista Billy Cobham. Já a maneira como constrói melodias belíssimas com precisão cirúrgica e velocidades jamais exageradas em seus solos deveria ser estudada por paranormais – os exemplos mais absurdos disto estão em “You Never Know There” e na ótima versão de “Rollin’ and Tumblin’”. Para nos embasbacar ainda mais, o guitarrista simplesmente arrasa nas maravilhosas versões de “People Get Ready” – de Curtis Mayfield, que Beck gravou com Rod Stewart no horrendo disco Flash nos anos 80 – e “A Day in the Life”, dos Beatles.
Quando a banda entra em “I Want to Take You Higher”, do Sly & The Family Stone, o público já está entregue aos pulos de alegria.
Até mesmo algumas canções de Emotion & Commotion incluídas no show ganharam força e, o que é mais importante, passaram a fazer sentido ao vivo. Foi o caso da união entre “Corpus Christi Carol” e “Hammerhead,
com Beck fazendo desta última o veículo perfeito para a demonstração de sua exuberante e peculiaríssima técnica.
Infelizmente, nem tudo é perfeito. O momento em que Beck empunha uma Gibson Les Paul a fim de homenagear seu criador, Les Paul, em uma espécie de dixieland chamado “How High the Moon” se mostra disperso e artificial, com vocais pré-gravados e arranjo preguiçoso, um verdadeiro “corpo estranho” dentro de um show memorável. Da mesma forma, a inclusão de “Somewhere Over the Rainbow” e “Nessun Dorma” fazem o show se transformar em uma pieguice digna de uma apresentação da mocréia Susan Boyle. Como Beck nunca dá bola para o que pensam dele, se deu ao luxo de omitir criminosamente a antológica “Cause We’ve Ended as Lovers”, de Stevie Wonder, e qualquer outra música do disco Blow by Blow, além de deixar de fora as não menos belas “Beck’s Bolero” e “Where Were You”.
Depois de assistir a um show desse naipe, voltei para casa relembrando as inúmeras ocasiões em que li e ouvi gente tecendo loas e elogios monstruosos a guitarristas não mais que medianos, como Jack White (White Stripes), Billy Corgan (Smashing Pumpkins) – quem diz que ambos são “guitar heroes” deveria ser condenado à cadeira elétrica embaixo de um chuveiro.
E aí a história da “juventude” voltou com outro significado depois de ver um “jovem” de 66 anos como Jeff Beck em cima de um palco. Sim, eu sei que a maioria das músicas de rock é feita por jovens, para jovens, e que falam a respeito de como é ser jovem. Só que mesmo eu, no alto dos meus 50 anos, ainda não perdi a capacidade de me emputecer quando ouço a velha ladainha “como você ainda ouve rock ser não tem mais idade para isso?” Ah, é? Quer dizer então que Neil Young e Bruce Springsteen deveriam “tomar tenência” e se resignar com a vida de fazendeiro no interior do Alabama? Sei… O pior é que nem todos os jovens são realmente jovens. Você já reparou quantas pessoas ainda nem chegaram aos 30 anos e sonham com uma carreira política ou como advogados de grandes multinacionais?
É por isso que, a cada ano que passa, fica mais difícil eu aceitar que certas coisas não fazem mais sentido. Não estou dizendo que, com o passar dos anos, devemos fazer como a maioria das pessoas, ou seja, acalmar o espírito, se resignar com a adrenalina que se esvai como vinho por entre os dedos e passar a ouvir jazz de restaurante. Ver Jeff Beck em ação, tocando de modo monstruoso, abrindo espaço para que seus ótimos companheiros de palco possam solar com sorrisos nos rostos, reforçou minha crença de que é possível perpetuar a juventude naquilo que a gente faz mantendo uma energia espontânea e mesmo uma inebriante euforia, aquela mesma que, aos seus olhos, tornava seus ídolos quase indestrutíveis no passado. E o rock sempre jogou na nossa cara a face suja/sacana/experimental/rebelde/ do mundo, mesmo que em momentos extremamente complexos e até mesmo mutantes, virando de cabeça para baixo todos os conceitos musicais, sociais e políticos do que era “natural”, do que era “correto”.
Em termos “guitarrísticos”, a exuberância técnica e musical de Beck é diametralmente oposta àquela propagada por caras como Yngwie Malmsteen, que tudo o que podem fazer é estuprar os sentimentos originalmente propiciados pelo rock ‘n’ roll, só para mostrarem que ainda são importantes, que ainda estão “acima” de nós, como que tentando nos humilhar com uma realidade artística muito distante daquela que acontece nas ruas ou nos ensaios em garagens empoeiradas. Essa babaquice domesticada nada mais é do que fazer exatamente aquilo que os jovens sempre abominam em seus pais ou nas “autoridades competentes”.
Não, a salvação da música em tempos de “rock colorido”, do hip hop americano domesticado/inofensivo e das “Lady Gagas da vida” não está na indigência musical estudada e pretensiosa das bandas indies com integrantes barbudos, muito menos na última banda “descoberta” pela imprensa inglesa. A benção redentora está em quem ainda se importa em tocar algo que irradie calor, ambição, exuberância, rebeldia e que estimule a capacidade de ampliar nossos olhos, ouvidos e mentes. A salvação está em quem nos faça ter vontade de viver.
Pode apostar que um show tem esta capacidade. Está aí o Jeff Beck, que não me deixa mentir…
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