Eduardo e Mônica: A questão de Gênero
Uma das músicas mais emblemáticas da banda Legião Urbana é, sem dúvidas, “Eduardo e Mônica”. De autoria de Renato Russo, vocalista da banda, a canção faz parte do álbum DOIS gravado em julho de 1986.
A partir do título já é possível perceber qual será o intento do autor: elencar a questão de gênero, levando os dois personagens, totalmente diferentes em pensamento, comportamento e classe social e que representam os sexos opostos, a travarem uma verdadeira batalha pela legitimação de um lugar e poder já garantidos naturalmente. Renato dá espaço para esses dois jovens colocarem em voga o debate em torno das questões referentes aos sexos masculino e feminino. É apresentada, de um lado, Mônica, uma jovem madura e independente social e financeiramente, apesar de mencionar sua idade. Do outro, o jovem Eduardo, 16 anos, totalmente dependente, mas que tenta vivenciar outros mundos, outras experiências. É baseado nesses dois mundos, totalmente diferentes, que o embate vai se dar.
A começar pelos versos da segunda estrofe: “Eduardo abriu os olhos, mas não quis se levantar ficou deitado e viu que horas eram. Enquanto Mônica tomava um conhaque noutro canto da cidade como eles disseram”, percebe-se que, de fato, a questão de gênero fica amplamente evidenciada por Renato Russo.
Apesar de a canção evidenciar tal aspecto, o que pressupõe um constante debate em nome das relações entre o sexo masculino e feminino, o autor coloca sempre a mulher, na pessoa da personagem Mônica, como um ser superior, do ponto de vista de uma escala intelectualmente evolutiva. Mônica, em oposição a Eduardo, é um ser socialmente elevado e dotado de imensurável inteligência e capacidade de progredir, além de ser mais velha e madura. Talvez tenha sido o objetivo de Renato: legitimar o sexo feminino e colocar as mulheres num lugar que sempre lhes pertenceu, mas que foi sempre negado pelo sexo oposto, ou simplesmente lembrar que todas as pessoas, de qualquer sexo, são iguais e podem viver, pensar e fazer as mesmas coisas.
No verso acima, enquanto Eduardo se espreguiçava na cama, Mônica já estava num lugar qualquer da cidade, tomando um gole de conhaque (se é que acordar cedo para beber ou se embriagar seja uma evolução tão “evoluída”!?). Mas o certo é: enquanto um ainda estava dormindo, o outro já estava acordado e já tinha saído, talvez para o trabalho ou escola, ou simplesmente para “tomar umas”. E o autor coloca justamente Mônica como a pessoa que acorda cedo e encara a vida sem medo.
Apesar de expor sempre as enormes divergências, em todos os aspectos, entre Eduardo e Mônica, Russo coloca um ponto de convergência, o que leva-se a pensar que a música vai falar de um simples encontrinho de paquera entre uma menina e um menino. Tal aspecto é encontrado nos dois primeiros versos da terceira estrofe: “Eduardo e Mônica um dia se encontraram sem querer/
E conversaram muito mesmo pra tentar se conhecer...”. O autor também mostra o acaso do destino que faz pessoas desconhecidas se encontrarem e assim viverem intensas e eternas relações de afeto, amor, ódio e desencontros; perderem o rumo da vida ou acharem um caminho e viverem uma vida plena. Eduardo e Mônica se encontraram por acaso, “sem querer”. E esse encontro reservava muitas surpresas, principalmente para Eduardo, que ainda era socialmente infantilizado.
A partir do encontro com Mônica, as portas da sociabilidade começam a se abrir para Eduardo. Um amigo o convida para uma festa que, vai ser “legal”, até porque é preciso se “divertir”. Mas Eduardo, ainda fechado no seu mundinho melindroso, não fica muito tempo na festa “estranha” com uma galera “esquisita”. Também pudera: ela “já tava pra lá de bagdá” com uma ou duas “biritas”. Óbvio, ele nunca tinha bebido na vida e muito menos frequentado festas com a turma.
Por outro lado Mônica, no auge da sua completude e auto-suficiência simplesmente “rir” (últimos versos da quarta estrofe), tirando uma onda da cara do novo e inexperiente amigo. Mas, a atitude de incertezas de Eduardo desperta uma curiosidade em Mônica a ponto de a mesma querer conhecê-lo um pouco mais. Na concepção da personagem Eduardo queria tão somente “impressionar”. Ela acha que é frescura, que é coisa de um playboysinho mimado qualquer que caiu de cabeça no mundo tido como único por ela. O fato de Eduardo não se adaptar ao mundo independente de Mônica e sua turma não é aceito pela mesma. E Eduardo “[...] meio tonto só pensava em ir pra casa” (versos finais da quarta estrofe). Ora, já são duas da manhã e para quem nunca saía era o stopim para uma encrenca daquelas com os pais.
Os dois trocaram algumas ligações e marcaram um encontro. Novamente o autor coloca Mônica num degrau mais elevado: “O Eduardo sugeriu uma lanchonete/ Mas a Mônica queria ver o filme do Godard” (quinta estrofe). Enquanto ele pensava simples, ela pensava longe. Ele queria conversar num lugar convencional, acessível, uma lanchonete, e ela num lugar de destaque social, um cinema, vendo um filme do cineasta Jean-Luc Godard. Os dois então decidem ir para o parque da cidade. Mônica vai “[...] de moto e o Eduardo de camêlo”. (sexta estrofe). Até nas coisas mais elementares, Renato Russo coloca Mônica sempre na frente, em relação a Eduardo, o que comprova o ferrenho debate entre os sexos proposto pelo autor. Mônica foi de moto, Eduardo foi de bicicleta.
Nos versos seguintes e últimos da sexta estrofe, mais uma prova da falta de vivência e conhecimento de mundo por parte de Eduardo. Ele acha estranho Mônica ter o cabelo pintado. “O Eduardo achou estranho, e melhor não comentar/
Mas a menina tinha tinta no cabelo”. Essa inocência absurda não se justifica pela pouca idade, mas pela forma como o garoto vivia, talvez forçado pelos pais que são muito antiquados e fechados as novas tendências.
Na sétima estrofe, Russo comprova, de forma verbal e objetiva, a enorme diferença entre os dois: “Eduardo e Mônica era nada parecidos/Ela era de Leão e ele tinha dezesseis”. Quanto a Eduardo, o autor se resume a dizer somente que ele tinha 16 anos. Quanto a Mônica, ela era leonina. Pessoas desse signo são firmes, têm autoconfiança, são extrovertidas e conhecedoras dos seus direitos. Ou seja, são pessoas super independentes e que sabem o que querem.
Mais a frente: “Ela fazia Medicina e falava alemão/E ele ainda nas aulinhas de inglês”. Observe que o sexo feminino na canção é sempre evidenciado e defendido em detrimento do sexo oposto. Essa autoconfiança e firmeza de Mônica a colocam sempre no mais alto lugar de destaque. Eduardo ainda fazia cursinho, aulinhas de inglês. Veja que o autor coloca o termo “aulinhas” para se referir ao que o garoto fazia. Não se sabe se a escolha do termo no diminutivo se deu para ironizar o atraso de Eduardo ou simplesmente para completar a sílaba poética, uma vez que ficaria quebrado dizer: “e ele ainda nas “aulas” de inglês”. E Mônica? A garota já cursava medicina e já era poliglota.
As diferenças não são somente no comportamento e na independência. A cultura de ambos também são divergentes. Mônica curte uma galera tida como os melhores da cultura erudita, tanto do exterior como nacional: Bandeira, Bauhaus, Van Gogh, Rimbaud, Mutantes, Caetano. Eduardo, fala sério, curte uma novela e um futebolzinho-de-botão com o avô. Ele era um cara um pouquinho sedentário e caseiro também, o que não é ruim. Mônica entendia um pouco de tudo. Falava sobre política, magia, métodos milenares de relaxamento, mas Eduardo “[...] ainda tava no esquema “escola, cinema, clube e televisão.” (versos finais da nona estrofe). De fato, o garoto era só um pouquinho sedentário, o cara ia algumas vezes ao clube e ao cinema, mas só isso. O resto ele fazia por obrigação, como ir a escola. Ao voltar, o divertimento era a famigerada televisão, motivo de tanta alienação de muitos adolescente e jovens mundo afora. Veja que Renato, mais uma vez fornece uma característica pejorativa as atividades de Eduardo: “escola cinema, clube e televisão”. O autor usa aspas dando um sentido cômico ao que o personagem faz. Objetiva-se enfatizar que são atividades infantilizadas e, que portanto, Mônica é o perfil ideal de adolescente/jovem.
Mas, seguindo a máxima popular que diz: os opostos se atraem, autor converge toda a divergência entre os personagens, levando os a aprenderem a conviver em meio a essa gama de diferenças. “E mesmo com tudo diferente, veio mesmo, de repente/Uma vontade de se ver/E os dois se encontravam todo dia/E a vontade crescia, como tinha de ser...”. (décima estrofe). Era nas diferenças que ambos se encantariam e tudo se tornaria belo.
Afetuosamente os leoninos podem ser presunçosos. E era exatamente assim que Mônica demonstrava ser, apesar da íntima relação com Eduardo e das boas experiências vividas juntos. “Eduardo e Mônica fizeram natação, fotografia/Teatro, artesanato, e foram viajar”. Note que ao se tratar das atividades feitas pelos dois, Russo não usa nenhuma marca tipográfica para destacar o ironizar. Mas, o que chama mais atenção, apesar da simplicidade de algumas experiências, é a mudança de Eduardo. Um rapaz acostumado ao mundo caseiro em que a diversão maior era a televisão e o futebol-de-botão, de uma para outra, se ver viajando, fazendo teatro, artesanato... Real mente Mônica, sexo feminino, estava destinada a revolucionar a vida simplória de Eduardo.
Apesar da relação de profundo afeto entre ambos, a garota não deixa de mostrar-se auto-suficiente, intelectualmente falando: “A Mônica explicava pro Eduardo/Coisas sobre o céu, a terra, a água e o ar...”. Sempre na ponta, Mônica toma a iniciativa e aproveita os momentos oportunos para mostrar a sua inteligência, aparentemente imensurável e inigualável.
“Ele aprendeu a beber, deixou o cabelo crescer/E decidiu trabalhar/E ela se formou no mesmo mês/Que ele passou no vestibular”. Definitivamente, Eduardo se insere no mundo elevado da amada. O carinha/boyzinho que tentava impressionar; que achava as festas estranhas; com gente esquisita; que ficava tonto com uma ou duas “biritas” e que morria de medo de chegar tarde da noite em casa, agora já sabia beber (não que aprender a beber seja lá um grande feito na vida de um ser humano), deixou o cabelo crescer. Esse mesmo carinha que achou estranho Mônica ter o cabelo pintado, agora anda de cabelo grande. O mesmo boyzinho que tinha um único esquema: escola, cinema, clube, televisão, novela e futebol-de-botão com o avô, agora tinha um emprego e, o melhor: saiu do cursinho e das “aulinhas” de inglês direto para uma universidade.
E como em toda e qualquer boa relação as brigas e os desentendimentos surgiram, mas, também, como em toda e qualquer boa relação os dois devem se completar e resolver tudo juntos, Eduardo e Mônica batalharam, construíram sua casinha, seguraram legal a barra mais pesada que tiveram e o resultado de tudo foi um lindo casal de gêmeos. Após a viajem, ambos retornam para Brasília onde tudo começou e onde tudo deve terminar, claro, com um super final feliz para os quatro.
Renato Russo encerra a canção com o mesmo refrão do início: “E quem um dia irá dizer/Que existe razão/Nas coisas feitas pelo coração?/E quem irá dizer/Que não existe razão!”. De fato, não há explicações para as coisas do coração. O que se sabe é que em se tratando de sentimentos do coração tudo pode acontecer inclusive o amor.
Quanto a questão de gênero, objeto de análise nesta canção, pôde-se comprovar que a mesma fica bastante evidenciada. Em todas as estrofes e versos, fica claro o intento do autor ao elencar as virtudes e as atitudes típicas de mulher madura e independente de Mônica em oposição as atitudes infantis de Eduardo. Renato Russo tem uma atitude tendenciosa ao se referir a Mônica, entretanto, ao se referir a Eduardo o tom é sempre depreciativo. O tema da canção poderia ser apenas falar das diferenças entre dois jovens que se conhecem e vivem um grande romance o que teria uma ar de suavidade e romantismo, mas não é isso que fica claro ao analisar a letra da canção, partindo dessa perspectiva. Percebe-se um constante embate entre os sexos masculino e feminino, representado pelos personagens Eduardo e Mônica.
Obrigado, Dalvan pelo excelente texto sobre essa música marcante para toda uma geração. Confiram abaixo o filme e o making off de Eduardo e Mônica :
Nenhum comentário:
Postar um comentário