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Baseado no disco The Wall, de 1979, a turnê recorre aos aparatos "floydianos" clássicos, com destaque para um muro de 137 metros de largura que serve como telão para o show. A última apresentação de Roger Waters no Brasil, em 2008, havia feito uso de um porco gigante e um prisma tridimensional que imitava a capa do disco Dark Side of the Moon, de 1973.
Reerguendo o Muro
"Normalmente, ninguém sabe até o momento em que entra no carro [de alguém dessa geração]", Waters responde em seu tom britânico ríspido e afivela o cinto de segurança. Como sempre, é difícil ler seus olhos azuis gelados - que hoje combinam com o tom de cabelo grisalho, levemente comprido, e a barba professoral. Mas parece que ele está brincando. O fato de ele ter acabado de compartilhar uma garrafa excelente de Montrachet para comemorar o fim de um longo dia de trabalho deve ter ajudado. Depois de vir de carro para Nova York pela manhã, ele foi submetido a exercícios puxados para os bíceps, os tríceps e o abdome ("Quase me mata, mas preciso ficar um pouco mais forte"), cantou escalas com uma professora de voz que o está ajudando a recuperar as notas altas da juventude, fez reunião com um produtor para escolher as roupas de palco pretos (rejeitou um par de botas de couro porque era "muito Bruce [Springsteen]" e outro por ser "Pete Townshend demais") e passou horas em um estúdio, fazendo ajustes à iluminação e à animação digital.
Ele está trabalhando nesse ritmo desde janeiro, determinado a aperfeiçoar a primeira e verdadeira versão em forma de turnê daquela que ele considera como a obra que definiu sua carreira, The Wall - álbum de 1979 que vendeu 30 milhões de cópias e que conta a história de um alienado astro do rock chamado Pink (cuja biografia traz muitas semelhanças com a sua própria). O show original do Pink Floyd - com seus bonecos gigantes, gráficos sincronizados e aquele muro, construído tijolo por tijolo e depois derrubado no clímax do show - estabeleceu parâmetros para todos os espetáculos de rock que vieram depois, de Steel Wheels (Rolling Stones) a Zoo TV (U2). Mas só foi encenado em quatro cidades do mundo, com meses de intervalo entre cada bloco de apresentações. Não foi lançado nenhum filme das performances, então elas se transformaram em uma lenda da qual as pessoas só guardam uma vaga lembrança - tirando a animação surreal de Gerald Scarfe, que também aparece na versão cinematográfica da obra, uma versão roteirizada e lançada em 1982.
Todos os shows deram prejuízo - os ingressos custavam cerca de US$ 12 - e a banda estava desmoronando. "Eles estavam chegando ao ponto em que um não suportava mais olhar para a cara do outro", diz Mark Fisher, o arquiteto que construiu tanto a versão de 1980 quanto a de 2010 da turnê (e que também trabalhou no palco "a garra" da turnê 360° do U2). "Foi muito conveniente eles poderem declarar que a coisa toda era um abacaxi, que era cara demais e cair fora com essas desculpas." O diretor de iluminação, Marc Brickman, que também trabalha no show novo, foi chamado para o projeto logo antes do início das apresentações originais. "Era alucinante - eu fiquei sem palavras", diz Brickman. "Era como montar uma ópera dentro de um show de rock and roll. Em 1980, não dava nem para sonhar com aquele show." Para Waters, a ideia por trás da teatralidade de arena era simples: "Não dá para pedir às pessoas irem ao circo e só colocar pulgas no meio do picadeiro - é preciso exibir elefantes e tigres."
Com seu alcance e ambição explícitos, The Wall foi o último baluarte daquilo que as bandas do punk e da new wave chamariam de "rock de dinossauro da década de 70" - mas a turnê que está para começar é muito mais do que uma reencenação em estilo "Parque dos Dinossauros". Waters trouxe o show para a atualidade com mensagens políticas bem audíveis: antiguerra, antiopressão. A letra de "Mother", por exemplo, não mudou - mas o vídeo que a acompanha, com suas imagens de uma câmera de segurança que tudo vê, agora fala de um governo opressivo, e não de uma mãe superprotetora. "É basicamente o mesmo show, mas com significado mais amplo", diz Fisher. "Precisamos encarar o fato de que é uma coisa um sujeito na casa dos 30 anos cantar sobre o início de sua vida adulta, que naquele momento era uma espécie de eco da criação que ele teve. Mas é outra coisa continuar fazendo isso quando se chega à casa dos 60."
O show se beneficia de 30 anos de avanços tecnológicos, sendo que os mais notáveis estão no vídeo de ultra-alta definição projetado no muro durante todo o espetáculo. Waters diz sentir o peso da idade, e está bem certo de que está será sua última grande turnê. "É uma empreitada enorme, e eu não tinha certeza se seria capaz de fazer isto", ele diz, sem soar muito convincente: ele parece certo de que é capaz, sim. Enquanto o carro avança na direção norte, Fred abre o celular e começa a ler em voz alta mensagens de texto das filhas, até sugerirmos que ele espere até parar em um sinal vermelho para fazer isso ("Eu costumo dar bronca nos motoristas que ficam mandando mensagem de texto", Waters diz em tom suave). Acontece que uma das filhas de Fred tinha escutando The Wall na academia, naquele dia mesmo. "Obrigado por doutriná-las", diz Waters, que está começando a se sentir lisonjeado. "Veja bem: eles precisam de educação! Porra, eu estava completamente errado." [Alusão à frase mais célebre da música "Another Brick in The Wall (Part II) ": "They don't need no education"; eles não precisam de educação] Fred está mais que deliciado. "Eles não precisam de controle dos pensamentos, cara!". [Mais uma alusão: "They don't need thought control", no original] Ele faz uma pausa, e depois perde o pudor: "Como é mesmo o verso seguinte? 'Nada de sa...' Qual é a palavra? 'Sarcasmo'", Waters responde.
"As pessoas sempre cantam as letras das músicas erradas", Fred retruca. "Mas eu estou com a autoridade do negócio aqui no meu carro!"
"Não sei se eu sou a maior autoridade do negócio, mas agradeço", diz Waters. Logo ele pega o cartão de Fred e promete entradas para o show. Há 33 anos, durante um show caótico do Pink Floyd em um estádio em Montreal, uma versão mais jovem e bem menos bem-humorada de Roger Waters teve um encontro desgraçado com outro fã ferrenho. Não acabou tão bem quanto desta vez. O show, que era a última parada na turnê da banda do álbum Animal, de 1977, foi um desastre desde o início, com equipamento de som fraco, que quase ficou encoberto pela plateia bêbada e mal comportada (em uma gravação pirata daquela noite, dá para ouvir Waters exclamando: "Puta que o pariu, parem de soltar fogos de artifício, de berrar e de gritar. Estou tentando cantar"). Finalmente, quando um garoto subiu na rede que separava a banda do público, Waters cuspiu nele. Depois, o cantor ficou abalado. Ficou se perguntando como tinha sido capaz de fazer uma coisa daquelas. Qual era seu problema? Ele estava com 33 anos e era a força motora por trás da maior banda psicodélica de todos os tempos. Mas seu primeiro casamento já tinha fracassado e sua banda estava seguindo o mesmo rumo - ele e o outro eixo criativo do Pink Floyd, o guitarrista e vocalista David Gilmour, estavam se afastando cada vez mais. Waters era rico e famoso, mas também raivoso e infeliz, incapaz de fugir dos problemas de sua infância - que começaram com a ausência do pai dele, morto na Segunda Guerra Mundial, cinco meses depois do nascimento do músico. "Eu devia ser bem assustador", ele diz. "Eu tinha a tendência de descarregar nas pessoas." Ele mudou, de verdade: mandando ver em um prato de lasanha no camarim durante um ensaio, ele morde um enorme parafuso de metal que o pessoal que cuida da alimentação deixou cair em sua comida. Depois de ficar com expressão estupefata por um instante, ele dá conta da situação com discrição e bom humor - pelo menos enquanto eu estou por perto).
Depois disso, Roger Waters daria início a duas décadas de terapia e iria se reconciliar com seu passado.
Mas como antes ele tratava de seus problemas como um verdadeiro astro do rock, ele se acomodou com um sintetizador e uma mesa de mixagem em uma casa isolada, no interior da Inglaterra, e compôs uma ópera-rock. Com contribuições complementares de Gilmour, aquele viria a ser o maior álbum-conceito de sua geração. "Eu estava tentando encontrar sentido na minha vida", Waters diz. "E, em certa medida, eu consegui." Como pensador visual tanto quanto musical - testes vocacionais empurraram Waters, aos 18 anos, quando era um garoto sem rumo, para a faculdade de arquitetura, onde ele conheceria Rick Wright e Nick Mason, futuros integrantes do Pink Floyd -, as idéias de Waters giraram em torno de um esboço que ele desenhou: mostrava um muro gigante construído dentro de uma arena de esportes. O show ao vivo foi criado sobre esse conceito desde o início, apesar de a ideia original ter sido construir o muro na frente da banda enquanto tocava, e terminar a apresentação quando o último tijolo fosse colocado. Mas, na medida em que a história foi se desenvolvendo, ele percebeu que o muro teria de ser derrubado. "Obviamente, havia uma razão para eu ter tido a ideia de construir o muro entre eu e o público, para começo de conversa - em algum lugar, em nível inconsciente, percebi como eu estava assustado", ele diz. Waters está sentado a uma mesa de reunião de vidro no estúdio de produção onde fez a preparação para a turnê. Antes que ele se acomodasse, uma assistente limpou a mesa. É aqui que ele tem passado boa parte do tempo desde janeiro - várias das janelas do escritório dão para uma parede de tijolos, coincidência que Waters aprecia. Está com os pés descalços - o All Star sem cadarço dele esquenta, por isso ele costuma chutá-lo para longe. Está com a mesma roupa que usa constantemente: camiseta preta justa, jeans claro, Rolex de platina. Parece ter dificuldade para escutar, e pode ou não estar ciente disto: de um jeito até adorável, ele costuma dizer "o quê?" rispidamente, como se a culpa fosse do outro por não estar pronunciando bem as palavras.
"Toda aquela coisa de ficar repelindo as pessoas quando eu era jovem e toda a agressão e a irritação e as dificuldades vinham do fato de eu passar todo o tempo apavorado com a possibilidade de que me descobrissem", ele diz. "De que as pessoas percebessem que eu não era quem eu queria ser. Eu tinha construído um muro que na época descrevi em termos teatrais como estando ao meu redor, todo tipo de insegurança sexual, enormes sentimentos de vergonha." Ele descarregou tudo neste conjunto de músicas: o pesar por causa do pai, o ódio pelas escolas rígidas da Inglaterra, a frustração com a infidelidade da mulher, seus próprios flertes com fãs de sua banda. Em sua franqueza crua, as canções tinham menos em comum com, digamos, Tommy, do que com um dos álbuns preferidos de Waters, John Lennon/Plastic Ono Band (talvez não seja coincidência que tanto esse álbum quanto The Wall tenham faixas chamadas "Mother"). Para balancear, Waters adicionou elementos da vida do líder original do Pink Floyd, Syd Barrett, cuja combinação de excesso de drogas e doença mental fez com que seus colegas o expulsassem do grupo em 1968. Waters preencheu o vazio da liderança e incentivou a banda, antes com caráter artístico, a gravar The Dark Side of the Moon, um dos álbuns mais vendidos de todos os tempos.
Apesar de toda a elegância "viajandona" da música do Pink Floyd, Waters sempre foi um compositor instintivo - entre seus artistas preferidos estão Leonard Cohen, Bob Dylan, Neil Young e John Lennon. "Roger é um sujeito que gosta de folk", diz Bob Ezrin, coprodutor de The Wall. "A música vai para onde as letras a levam." Na medida em que Waters ia compondo a música, ele começou a insistir em um tema de três notas - mais conhecido como a melodia do refrão de "Another Brick in The Wall (Part II)", mas que é recorrente em diversos contextos por todo o álbum. Ele hoje reconhece que a melodia é uma retomada de um riff que ele escreveu uma década antes, em "Set the Controls for the Heart of the Sun", de 1968 (que, de um jeito bem sinistro, contém a frase: "Who is the man who arrives at the wall?" - quem é o homem que chega ao muro?). Antes de o Pink Floyd gravar qualquer nota de The Wall, Waters recrutou o desenhista Gerald Scarfe para começar a criar os bonecos infláveis grotescos e rebuscados e desenhos que, em grande parte, dariam a direção do visual e do clima da obra. Ele levou as demos das músicas à casa de Scarfe um dia. "Quando ele terminou e desligou a fita, um silêncio desconfortável se instalou", Scarfe lembra. "Porque qualquer coisa que se dissesse seria inadequada. E eu disse: 'É ótimo'. E mais um silêncio se instalou, e Roger disse: 'Bom, estou me sentindo como se tivesse acabado de abaixar as calças e cagado na sua frente'."
Roger waters está sentado imóvel, assistindo a um jovem David Gilmour tocar o solo de guitarra celestial de "Comfortably Numb", faixa de The Wall, talvez a melhor música entre todas do Pink Floyd. O clipe, que passa em um enorme monitor Mac em uma sala de edição, faz parte de filmagens dos shows originais de The Wall, desaparecidas havia muito tempo, que foram restauradas recentemente (e que os fãs terão a oportunidade de comprar algum dia, sem dúvida). A intenção de Waters não era exibir esta parte. Ele queria ver um solo secundário feito pelo guitarrista de apoio Snowy White, que, diferentemente de Gilmour, vai acompanhá-lo na nova turnê de The Wall. Mas ele absorve cada segundo do solo e só diz: "Esse aí não é o Snowy". A disputa é grande, mas é provável que o Pink Floyd vença na categoria do rompimento mais feio entre as bandas grandes do rock. Waters criava os conceitos, escrevia todas as letras e uma boa parte da música - até onde sabia, ele era o líder inequívoco do grupo. Gilmour não concordava muito - ele tinha a voz mais forte para cantar, era um ótimo guitarrista e também criava muita música. "O negócio teve mais a ver com David e eu", diz Waters. "Nós tínhamos ido um para cada lado. Eu não queria mais discutir com ele sobre as coisas, e só porque nós tínhamos opiniões diferentes sobre tudo - do ponto de vista musical e político e filosófico -, passou a ser inevitável que nos tornássemos combativos." A banda começou a se desintegrar durante as gravações de The Wall, na medida em que Waters transformou o grupo em um mero veículo para sua visão altamente pessoal. O colapso ocorreu durante o álbum que veio a seguir, The Final Cut, que mais parecia um álbum-solo de Waters. Ele deixou a banda em 1985 - e ficou estupefato e depois apoplético quando Gilmour e o baterista Nick Mason resolveram seguir com o nome Pink Floyd. Ele tentou detê-los na justiça, mas eles fizeram duas grandes turnês sem ele e lançaram quatro álbuns, ao mesmo tempo em que Waters batalhava para vender ingressos para as turnês de seus próprios discos solo. "Ele não é [o Pink Floyd]", Waters disse em relação a Gilmour em 1987. "Se um de nós fosse ficar com o nome Pink Floyd, tinha que ser eu." Eles fizeram um acordo que permitia a Gilmour e Mason ficar com o nome da banda, mas garantindo a propriedade total de The Wall para Waters.
Em 2005, a tensão tinha relaxado a ponto de a formação clássica do Pink Floyd se reunir para um set de quatro músicas no Live 8. "Eu me sinto agradecido por termos conseguido tocar aqueles 18 minutos juntos, nós quatro meio que conseguimos passar a régua na história", diz Waters. "De lá para cá, as coisas melhoraram entre David e eu. Nós não nos encontramos socialmente - ele praticamente mora no meio do interior da Inglaterra, e eu passo a maior parte do tempo em Manhattan, então os nossos caminhos não se cruzam -, mas nas pouquíssimas vezes em que estamos na Inglaterra ao mesmo tempo, é provável que jantemos juntos. Mas, é, não tem mais nenhum desentendimento ou briga rolando." A relação mais calorosa com Gilmour significa muito para Waters - ele está determinado a não ofendê-lo. Em julho, os dois se reuniram, sem aviso prévio, em um evento beneficente bem menor, apresentando-se para 200 pessoas em uma festa para a arrecadação de fundos para crianças palestinas em Oxfordshire, na Inglaterra. Foi ideia de Gilmour, e ele prometeu a Waters que, se ele participasse da apresentação, ele apareceria e tocaria "Comfortably Numb" em um dos shows da nova turnê de The Wall (Londres parece ser uma boa aposta, pelo menos melhor do que, digamos, Omaha). Além disso, Waters consegue imaginar pelo menos mais uma apresentação do Pink Floyd. "David e Nick e eu podemos fazer uma apresentação única em algum lugar, mas não vai ter como fazermos uma turnê", ele diz, sugerindo que podem considerar um show beneficente único - "tipo o Live 8, mas provavelmente só com a gente. É uma pena não termos conseguido fazer antes da morte de Rick [em 2008]".
Waters e Gilmour provavelmente não voltarão a gravar juntos. Waters fica eriçado perante a ideia de que existisse algum tipo de magia insubstituível nas colaborações deles. "Certamente, David teve enorme influência sobre o meu modo de compor, todas aquelas coisas maravilhosas de harmonia e melodia", ele diz. "Mas discordo da ideia de que eu seja incapaz de criar algo com alguma outra pessoa que se compare a The Wall ou Dark Side of the Moon ou Wish You Were Here, e a prova viva disso é Amused to Death [álbum solo de sua autoria, de 1992], porque tem partes extraordinariamente lindas." Waters acha que não tem importância o fato de ele ser o único integrante do Pink Floyd na nova turnê de The Wall. "Se você olhar o programa de 1980, a primeira página diz: 'The Wall: Composto e Dirigido por Roger Waters, Interpretado por Pink Floyd'", ele diz. "Bom, do meu ponto de vista, essa peça poderia ser interpretada por qualquer um. Eu por acaso dirijo esta produção e canto e toco nela, da mesma maneira que fiz na outra. Mas alguns dos outros artistas são diferentes." Para este show, ele substituiu Gilmour por dois: um cantor chamado Robbie Wyckoff dá conta dos vocais, enquanto o guitarrista-virtuose Dave Kilminster (Waters o chama de "The Killer" - o matador) cuida da maior parte das guitarras. Entre os outros músicos estão o ex-líder da banda do programa Saturday Night Live G.E. Smith (na guitarra e no baixo) e o filho de 33 anos de Waters, Harry, um músico de jazz que toca teclado com o pai desde 2002 (sua primeira colaboração com a música de Waters foi gravar a voz de criança no início da faixa "Goodbye Blue Sky", de The Wall, que ecoa pela arena todas as noites).
A turnê de The Wall, que teve os ingressos esgotados em poucas horas na maior parte das datas, é o estágio final na retomada do legado do Pink Floyd por Waters. Essa ação começou com sua primeira turnê solo de sucesso, em 1999, e continuou com sua interpretação de Dark Side of the Moon, em 2006. Ele finalmente encontrou uma conexão com os fãs - "redescobri a ideia de me sentir bem por estar em um auditório e aceitei uma espécie de caso de amor entre eu e o público" - e livrou-se de seu ressentimento por ter perdido o controle do nome da banda. "É muito provável que, se eu não pudesse fazer essas turnês, continuaria amargo até hoje", diz. "As pessoas estão reconhecendo que o trabalho era meu." Waters se sente tão à vontade quando está no comando que é difícil imaginá-lo em qualquer outro tipo de carreira que não a solo. "Não dá para fazer uma coisa dessas de maneira democrática", ele diz. "E essa foi provavelmente a razão central absoluta por que eu tive que me separar de David, Rick e Nick. Porque estava ficando cada vez mais desagradável para todo mundo. Realmente, este é o meu estado natural. É assim que eu me sinto mais feliz. Eu adoro trabalhar com outras pessoas, e tenho enorme respeito e amor pelos músicos com quem trabalho. Quero ouvir as idéias de todo mundo o tempo todo, mas não quero votações nem nada assim. Tenho pena dos roteiristas que trabalham no cinema - onde os produtores têm todo o poder e os roteiristas só fazem o que mandam. Eu simplesmente diria: 'Vão se foder! Vão escrever sua própria porra de roteiro!'."
Mais ou menos na época em que Waters completou 3 anos, em 1946, ele começou a ver os pais das outras crianças voltarem da guerra para a cidade em que ele nasceu, Cambridge. O pai dele, Eric Fletcher Waters, tinha morrido dois anos antes na Itália, na batalha de Anzio, mas o garoto foi incapaz de processar o fato. "Minha mãe disse que eu falei para ela, aos 3 anos: 'Vou para a Itália e vou trazer o meu pai de trator'. 'Nunca se viu um menininho tão obstinado quanto você era', ela me disse. Tentou explicar que eu não podia ir buscar o meu pai de trator. Parece que eu olhei para ela, apertei os olhos e disse: 'Nesse caso, vou em um ônibus de dois andares', e saí batendo os pés. Isso é meio engraçado, mas também é muito triste." Essa perda definiu a vida de Waters em muitos aspectos. "Eu uso o heroísmo dele quase todos os dias", ele diz. "Mas não levo uma vida sem culpa, de jeito algum, e nem sempre sou legal com todo mundo. Não estou dizendo que sou uma porra de um santo, mas eu uso o heroísmo do meu pai como base." Como ele explica em um poema incluído no programa da turnê, ele acredita que seu pesar o conecta a qualquer pessoa que sofreu perda similar em uma guerra - coisa que foi fundamental para a ampliação da mensagem de The Wall. Os danos que Pink sofre com a violência da guerra representam uma ideia que pode ser geral: em vários pontos, o muro é coberto com fotos enviadas por fãs de entes queridos perdidos em conflito, atendendo a um pedido de Waters no Facebook (ele está apaixonado pela ideia das redes sociais - talvez Pink não fosse tão deprimido se tivesse uma conta no Twitter). O músico sabe que temperar um artefato adorado do rock com uma mensagem política pode incomodar aos fãs. Para o programa, ele escreveu um ensaio sugerindo que o cristianismo, o judaísmo e o islamismo são igualmente inválidos: "Chegou a hora de deixar de lado a noção de uma presença onipotente". "Você acha que eu ia sair ileso com uma destas em um programa de rock and roll?", ele pergunta com um sorriso. No final, chegou à conclusão de que a resposta era não - e eliminou o texto. Existem várias referências ao muro da Faixa de Gaza no show, incluindo uma imagem da Estrela de Davi no clímax, enquanto vozes em coro entoam "derrubem o muro". A animação exibida durante "Goodbye Blue Sky" mostra aviões lançando bombas no formato de vários símbolos, de luas crescentes muçulmanas ao logotipo da Shell; em certa altura, estrelas judaicas caem de um avião, seguidas por cifrões. Quando eu sugiro que a combinação pode ser interpretada como antissemítica, Waters dá de ombros e diz que não teve essa intenção. "Há lucro enorme, enorme a ser obtido com a guerra, e esse, no geral, é o motivo pelo qual as batalhas acontecem com tanta frequência", ele diz. Quando a turnê começou, Waters não resistiu à pressão dos críticos e alterou esse trecho. Se você permitir que ele comece a falar desse assunto, ele entra em clima de palestrante e pode passar um bom tempo falando sem parar. "Este show é, sem vergonha nenhuma, sobre todas essas grandes questões - e o sucesso do trabalho que eu fiz com Rick, Dave e Nick me dá o poder de ter uma plataforma. Algumas pessoas acham que os outros não devem usar as plataformas que têm por serem famosos ou por causa do sucesso. Eu não concordo com essa visão, de jeito nenhum. Sempre adorei Hanoi Jane [referindo-se ao polêmico apelido da atriz Jane Fonda, que foi fotografada em uma bateria antiaérea do Vietnã durante o conflito com os Estados Unidos]. Adoro quando Sean Penn chega e diz alguma coisa ou participa. E John Lennon ou qualquer uma das outras pessoas que ergueram a voz e que fizeram diferença. (...) Tenho a mesma responsabilidade ao montar esta produção quanto Picasso teve ao pintar Guernica."
Nove dias antes da estreia da turnê, no dia 15 de setembro, Roger Waters está parado no meio de uma arena vazia em Nova Jersey, olhando fixo para seu muro meio construído, que se estende por 73 metros por toda a parte de trás do local. De repente, as luzes se apagam, luzes vermelhas furiosas cobrem a arena e uma faixa-base do Pink Floyd tocando "In the Flesh?" ruge: não há ninguém no palco, mas o show começou. Ainda há muito a fazer, mas ali parado no meio da escuridão avermelhada, Waters não consegue evitar a expressão de satisfação que se estampa em seu rosto. Os ensaios foram bem. Uma semana antes, em um estúdio perto da casa do músico nos Hamptons, a banda chegou quase até a segunda metade do álbum antes de deparar com alguma dificuldade: as transições rítmicas e os sons de guitarra em "Run Like Hell" se comprovaram traiçoeiras. "Não", Waters diz, com gentileza. "E, quando digo 'não', eu quero dizer não." E Waters não estava lá muito satisfeito com a repetição da parte "run, run, run" pelas cantoras do coro: "Devem ser quartas com toda a força", ele diz.
Enquanto a banda assiste, acomodada em cadeiras dobráveis no piso, o primeiro ato inteiro se desenrola: bonecos - o professor diabólico, a mãe monstruosa - inflam e tomam o palco, as projeções de vídeo absurdamente reluzentes e vívidas transformam o muro em uma das maiores telas de cinema do mundo, e a barreira propriamente dita se expande, tijolo de papelão após tijolo de papelão, graças a homens trabalhando atrás dos panos. Nem tudo está pronto: os efeitos pirotécnicos não estão armados e um modelo de avião está todo desmembrado nos assentos baratos. Os vídeos, que combinam versões retrabalhadas das animações de Scarfe com novas imagens do diretor de criação Sean Evans, são projetados em uma resolução bem superior à de uma tela de um cinema Imax - os servidores do estúdio de produção precisaram de até meia hora para processar cada frame de animação. A projeção de vídeo é tão precisa que os tijolos não se acendem até estar em seu lugar exato. Na verdade, cada tijolo é uma caixa de papelão vazia, presa a colunas telescópicas que podem ser ativadas por computador, derrubando o muro todo em um único instante - coisa que deve facilitar a ação em relação a 1980, quando Mark Fisher tinha de ativar o desmoronamento manualmente. "Fiquei condenado para sempre como o homem que tinha de ficar sentado na parte de trás, acionando os interruptores, enquanto todo mundo ficava na parte da frente dando risada da minha cara", ele lembra. Na vida real, o desmoronamento do muro nunca foi assim tão dramático. "Vai caindo tijolo por tijolo", ele diz. "Crescer é isso. Na minha visão, é um desmantelamento do nosso muro, tijolo por tijolo, e a descoberta de que nos tornamos mais amáveis quando baixamos as defesas." Waters está planejando seu quarto casamento, agora com a namorada com quem está há dez anos, Laurie Durning. "Não estou dizendo que descartei o meu muro ou os meus muros completamente, mas, ao longo dos anos, eu permiti que uma parte maior dele se desfizesse - e me abri à possibilidade do amor", ele diz.
Na medida em que o show prossegue, Waters circula pela arena - com sua postura levemente recurvada e seu caminhar um pouco manco, ele guarda certa semelhança com seus bonecos. Ele dá seus pitacos usando um microfone - "Pintem aquele órgão B-3 de preto. Tudo tem que ser preto" -, mas, no geral, só fica lá absorvendo a coisa toda. O último tijolo se encaixa; é o fim do primeiro ato. Os músicos aplaudem, e o líder deles também. "Muito bem, carpinteiros", ele diz. Alguns minutos depois, a equipe se reúne no piso da arena e Kilminster traz um violão. Hoje Waters completa 67 anos, e os cantores da turnê têm uma surpresa para ele: uma versão de harmonia rebuscada para uma antiga de Phil Spector, "To Know Him Is to Love Him" [conhecê-lo é amá-lo], que Waters recentemente interpretou com Gilmour na apresentação beneficente que os dois fizeram juntos. A letra foi mudada de leve e está cheia de piadinhas internas: "For him, we love to sing/Until he changes everything. (...) Just to see him smile/Makes this tour worthwhile" [Adoramos cantar para ele/Até que ele muda tudo. Só de vê-lo sorrir/Esta turnê vale a pena]. Roger Waters recebe de presente uma camiseta com estampa da Tabasco - ele usa esse molho de pimenta em tudo o que come -, veste por cima de seu modelo preto padrão e limpa a garganta. "Obrigado, pessoal", ele diz, com a voz embargada por um segundo, e logo começa um discursinho de incentivo pré-turnê. "Vai ser a maior moleza", ele diz. "É a coisa mais fácil do mundo. Obrigado por tudo que você fizeram." Ele faz uma pausa e oferece um sorriso. "Agora, todo mundo de volta para o palco."
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