
Semana passada, recebi toda a discografia da Legião Urbana, revitalizada em um belíssimo tratamento gráfico, em
digipack imitando os antigos LPs, com encartes caprichadíssimos, textos e fotos de qualidade irrepreensível, som remasterizado em Abbey Road e o escambau. Coisa de gente grande, feita com capricho e esmero, algo que infelizmente é exceção aqui no Brasil quando falamos em gravadoras – ou aquilo que sobrou delas.
Mas o que mais me espantou não foi isso que você acabou de ler. O que me deixou realmente pasmo é ter percebido, décadas depois de seus lançamentos originais, que cada um destes discos ainda traz um discurso poético veemente e corrosivo, uma consistência instrumental simples e certeira, e o mais importante: um cara que sabia o que estava cantando ao microfone.
Ok, eu e você sabemos que toda a cultura pop é marcada por ciclos, em que aquilo que é ruim hoje pode ser transformado em algo bacana na década seguinte e voltar a ser ruim na década posterior. Também sabemos que reciclar discos de catálogo em um formato luxuoso é uma velha estratégia das gravadoras para obter mais uns trocados e obter um pouco mais de oxigênio em sua longa agonia na jornada que está levando-as à morte. E ainda assim tiros no pé são dados até mesmo neste caso específico – onde já se viu cobrar inacreditáveis R$ 140 pelas edições em LP destes mesmos discos da Legião Urbana? Absurdo total!!!

Mas não é a respeito de mais esta burrada da gravadora que quero escrever hoje. Não vou fazer com que você perca seu tempo lendo aquilo que penso a respeito de cada um destes discos que acabaram de ser relançados – Legião Urbana (1984), Dois (1986), Que País é Este? 1978-1987 (1987), As Quatro Estações(1989), V (1991), O Descobrimento do Brasil (1993), A Tempestade (1996) e Uma Outra Estação (1997) – e que você provavelmente já conhece de cabo a rabo. Quero escrever sobre a impressionante consistência do trabalho da Legião Urbana vista/ouvida com olhos/ouvidos de um velho (eu) que viveu uma época em que o rock brasileiro dos anos 80 – o que posteriormente passou a ser chamado de “BRock”, termo que, se não me falha a memória, foi criado pelo excelente jornalista carioca Arthur Dapieve – era pontuado por bandas que faziam um som muito distante da exuberância técnica das bandas de heavy metal e dos grupos defusion, ainda exercendo a volta à simplicidade estabelecida a ferro e fogo pelo punk e, principalmente, pelo pós-punk.

Foi uma época exuberante na união entre um instrumental direto e reto, letras engajadas em retratar fielmente e de modo literário as sensações que dominavam a molecada naquela época, e principalmente na identificação que havia entre artistas e plateias. Foi uma época em que cada disco de bandas como Titãs, Barão Vermelho, Lobão, Paralamas do Sucesso, RPM, Capital Inicial e Ira!, entre outras, era aguardado com ansiedade pela grande maioria do público jovem no Brasil. Foi uma época em que o amor, a dor, a felicidade, a tristeza, a sociedade, os pais e o governo eram retratados por meio de poesia, fosse ela raivosa, melancólica ou esperançosa.

Dentro deste cenário, a banda capitaneada por Renato Russo foi transformada em ícone, muito menos pela parte instrumental nada mais que correta que os caras tocavam, muito mais pela maneira como este mesmo instrumental servia de suporte para as letras de Renato. Ninguém naquele tempo conseguiu retratar o mundo em que vivíamos no Brasil com tanto lirismo melancólico e romântico ao mesmo tempo, com tanto realismo e profundidade.

Ao contrário do que a maioria das pessoas insiste em renegar, ainda ouço com prazer os mesmos sons que ouvia em minha infância e adolescência, sem a menor sensação de saudade nostálgica ou qualquer traço de tristeza. E isso me faz lembrar que meus amigos, a maioria headbangers naqueles tempos, embora sempre me vissem como um cara exageradamente eclético em termos musicais – não entendiam como eu podia gostar de Judas Priest, Iron Maiden, Killing Joke, Duran Duran e Gang of Four com a mesma intensidade -, não conseguiam conter o riso quando eu explicava que a Legião Urbana era legal justamente porque o som simples e sem firulas emoldurava letras de enorme gabarito poético. Tudo bem que Renato Russo muitas vezes usou como influências textos de Oscar Wilde, Rimbaud, Thomas Mann e do I-Ching de modo digamos, “excessivo”, e que várias músicas da banda traziam trechos quase plagiados de canções de grupos inglesas como XTC e Wire, dentre muitos outros. O importante é que o resultado final trazia uma “originalidade pessoal” e uma sinceridade inacreditáveis, ainda mais quando ouvidas por jovens dentro de uma sociedade ainda traumatizada pela longa jornada de terror propiciada pela ditadura.

Por que todas as canções de cada um destes discos ainda resistem sem envelhecer? A resposta está justamente na integridade com que Renato e seus amigos cantaram e tocaram suas próprias vidas.
Quando penso que a grande parte da molecada de hoje é formada por filhos de pais que viveram aquela época e que idolatravam a Legião Urbana e tantas outras bandas bacanas daqueles tempos, chego a duvidar da eficiência da educação familiar perante a “deseducação” que presenciamos hoje em dia, com pirralhos mal-educados e ignorantes, meninas histéricas e burrinhas, todos unidos e desinformados em busca de um mundo colorido em que não seja preciso pensar, pois o importante é sorrir enquanto uma baba elástica e bovina (obrigado, Nelson Rodrigues!) escorre pelo canto de suas bocas juvenis. E tudo o que Renato Russo menos queria era esta pasmaceira que reina no público em geral, uma massa de gente inculta e que não vê a hora de fazer sucesso fácil a qualquer preço.
Triste isto, não?
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