Já dizia a profecia de Nostradamus: em janeiro de 1985, uma tragédia mataria milhares de pessoas durante um evento que reuniria muitos jovens naAmérica Latina. Logo, as suspeitas foram apontadas para o visionário Rock In Rio, o primeiro grande festival de rock do Brasil, sediado em uma das cidades mais famosas do mundo.
Alguns até caíram na história do mesmo que previu milhares de vezes o fim do mundo, deixando de conferir performances históricas, ou mesmo proibindo seus filhos de fazê-lo. Mas para a maioria, a paixão pela música falou mais alto. “Um coroa muito gente boa [entusiasta da profecia] fez de tudo para me convencer a não ir. Mas se eu tivesse que morrer, morreria assistindo o festival”, conta o advogado Haroldo Dantas, que frequentou quatro dos dez dias da edição e se gaba por ser uma das vozes que acompanhou o Queen no histórico coro registrado na Cidade do Rock.
Dantas e as milhares de pessoas, porém, mostraram mais uma vez que o profeta estava errado, saindo de lá propagando um dos slogans mais conhecidos do festival na ponta da língua: “Eu Fui”.
O primeiro grande festival do Brasil
Atualmente, não é difícil ir a um festival de música no Brasil. Existem muitos, com as mais variadas estruturas e gêneros musicais. Só em 2010, tivemos desde os grandes SWU, Planeta Terra e Natura Nós até os independentes que pipocam por todo o Brasil. Alguns, extintos, também já marcaram época, como o Tim Festival, responsável por trazer nomes como Julian Casablancase seu Strokes, e o Hollywood Rock, que deu palco a uma histórica e bizarra apresentação do Nirvana. Mas talvez nenhum deles teria se aventurado da mesma maneira se o Rock In Rio não tivesse dado o ar de sua graça.
“Foi o nosso primeiro grande festival. Só isso já bastaria para entrar na história”, como sintetiza Marcelo Costa, editor do Scream & Yell. Mas a situação em 1985 era bem diferente da qual nos encontramos hoje: o país estava acabando de se livrar do fantasma da ditadura militar, a realidade econômica era bem diferente e a América Latina inteira passava não era rota dos shows dos grandes artistas internacionais.
De repente, 14 atrações nacionais e 15 internacionais aportavam de uma vez só na Cidade do Rock, construída em um terreno de 250 mil metros quadrados na Barra da Tijuca. No espaço, além do palco, dois shopping centers com 50 lojas, dois centros de atendimento médico e uma loja do McDonald’s (que entrou para o Guiness Book, por vender 58 mil hambúrgueres em um único dia).
Na época, a expectativa criada em torno do Rock in Rio era enorme, o Brasil inteiro queria estar lá. “todo mundo queria estar lá, com aquele bocado de matérias toda hora aparecendo na TV, no jornal, aquilo criava uma expectativa imensa. Era um lance de querer participar – sentimento que carrego até hoje nos festivais que vou: quero participar. Aliás, todo mundo queria participar”, conta Fernando Lopes, 37 anos. “Foi incrível. A Cidade do Rock era uma arena gigantesca com um público o mais diverso que se pode imaginar, desde a “turma da pesada” até casais de namorados. Foi o encontro de tribos mais pacífico que já presensiei até hoje”, completa o jornalista Ney Motta, de 45 anos.
E tudo começou com um público de 380 mil pessoas, daquelas muitas que seguiam as tendências do momento, com seus mullets e ombreiras. Elas usavam luvas verdes fosforecentes às seis horas da tarde da sexta-feira, 11 de janeiro, quando o ator Kadu Moliterno, escolhido para ser o apresentador, deu início a tudo aquilo. E quem teve a honra de batizar o palco foi o performático Ney Matogrosso, um brasileiro no meio de um cenário que, quase que de forma homogênea, ainda não acreditava na música nacional. “Eu previa uma vaia estrondosa de todos os metaleiros que estavam ali para assistir ao Iron Maiden. Foi um reboliço geral, ao mesmo tempo que vaiavam ele, gritavam como vitoriosos. Quando o Ney subiu no palco, cantou a primeira música. Trocou de roupa lá mesmo no palco, cantou a segunda, a terceira e daí em diante e a galera respeitando ele, eu pensei ‘mas não é que nós metaleiros somos muito educados mesmo’”, conta o jornalista Ney Motta.
A ditadura acaba no Brasil, mas se mostra na música
Na quinta noite de Rock in Rio, o Brasil não era mais um país governado por militares: naquele dia acontecera a eleição indireta do civil Tancredo Nevespara o cargo de Presidente da República. Enquanto isso, o primeiro show daquela noite na cidade do Rock era um verdadeiro desafio para a nascente democracia brasileira. A plateia de metaleiros, que esperava os shows deAC/DC e Scorpions, teve que assistir aos show de Kid Abelha e os Abobóras Selvagens e Eduardo Dusek (usando roupa de clown). Ambos foram ferozmente vaiados pelos camisas cinzas, que chegaram a jogar pedras no palco. Dusek revidava: “Eu estou com a maioria. As pessoas que estão jogando coisas no palco têm mais é que ser linchadas. Se você é negativo, porque vir a um festival de rock? Fique em casa e se suicide que é melhor!”.
A realidade de um cenário que, infelizmente, ainda guarda os seus resquícios até hoje. “O público brasileiro não está pronto para a diversidade artistica. O brasileiro não está pronto nem para se aceitar como um povo com várias faces”, aponta Costa. A democracia só foi verdadeiramente celebrada na voz de Cazuza, que celebrou dois shows mais tarde o fim da ditadura no encerramento do show do Barão Vermelho, com a canção Pro Dia Nascer Feliz. “Que o dia nasça feliz amanhã pra todo mundo! Um Brasil novo, uma rapaziada esperta” (com o característico sotaque carioca), desejava Cazuza.
No dia seguinte, Hebert Vianna, que ainda era uma revelação com osParalamas do Sucesso, pediu: “Se não gostam de quem está tocando, fiquem em casa aprendendo a tocar. Quem sabe no próximo vocês não estão aqui em cima?”, em defesa do acontecido com Kid Abelha e Dusek. Na mesma noite,Lulu Santos reclamaria ainda do tratamento especial dispensado aos americanos. Sem cantar o clássico Como Uma Onda, ele termina seu show falando: “os americanos querem que eu acabe”.
Cheiro do ambiente
Tudo isso, por mais emocionante que pareça ser, aconteceu em um mar de lama. Isso porque a partir do segundo dia choveu tanto que o gramado da Cidade do Rock se transformou num grande lamaçal. Com o passar dos dias, o cheiro de lama se misturou com urina e 1,6 milhão de litros de cerveja Malt 90(chamada na época de Malt Nojenta), a oficial do festival, formando um dos cheiros mais característicos da história.
Malt 90, ou Malt Nojenta. Só pelo apelido já dá para imaginar o porquê de não existir mais.
A lama, não tão aproveitada quanto a do clássico Woodstock de ‘69, era tanta que o livro escrito pelo publicitário Cid Castro sobre esse primeiro Rock in Rio recebeu o título de Metendo o Pé na Lama.
O maior show e cachê do Rock in Rio
O show mais visto do Rock in Rio I no mundo foi o do Queen de Freddie Mercury. Enquanto 250 mil pessoas cantaram Love of My Life em coro, 250 milhões assistiram ao show pela televisão, em todo mundo, até a MTV americana transmitiu o show.
Pode-se dizer que o Queen foi um dos responsáveis pelo sucesso do Rock in Rio. A banda foi a primeira grande atração a confirmar presença na Cidade do Rock, e só depois deles os demais artistas internacionais passaram a confirmar presença no festival. Não à toa, eles ganharam o maior cachê, que foi de 600 mil dólares.
“Foi só depois dali que a gente virou profissional”
A partir do Rock in Rio, o rock brasileiro começa a se profissionalizar, tentar fugir um pouco dos padrões gringos e se adaptar a uma realidade. A maioria das bandas ainda era muito inexperiente, não acostumada aos eventos e grandes estruturas profissionais. E não só as bandas: os técnicos de som também passaram a entender melhor como funcionava a estrutura musical e profissional necessária para a operar em grandes shows.
Em entrevista à Revista Bizz na época, Guto Goffi, do Barão Vermelho, lançou a seguinte declaração: “Os artistas da MPB eram relapsos em relação à qualidade dos equipamentos. O Rock in Rio ajudou a mudar isso”. Paula Toller(Kid Abelha), também à Bizz, confessou: “Foi só depois dali que a gente virou profissional”.
Ingresso
Um ingresso para um dia do Rock in Rio I custou de 16 a 28 barões. Quem comprou em outubro de 1984, quando começaram as vendas, pagou 16 barões, em novembro, pagou 18 barões, em dezembro 20. Em janeiro custou 28. Um barão era o equivalente a mil cruzeiros. Eles eram vendidos no extintoBanco Nacional.
1985
E 1985 estava apenas começando. Naquele mesmo ano, morreria Tancredo Neves, Mikhail Gorbatchev assumiria a URSS, Ultraje a Rigor e Legião Urbana lançariam seus primeiros álbuns, Ayrton Senna ganharia sua primeira corrida, o clássico We Are The World chegaria às lojas, seria realizado o Live Aid e estrearia a série Armação Ilimitada na TV Globo, que tornaria Kadu Moliterno ainda mais famoso. Mas, no entanto, gente como Queen, Iron Maiden, Whitesnake, Nina Hagen, Rod Stewart, Scorpions, Ozzy, AC/DC, Yes, Go Go’s e B52’s já havia matado a imensa sede de atrações internacionais, pelas quais o Brasil clama cada vez mais – e hoje é atendido com precisão.
“Se tivesse que morrer, morreria assistindo o festival”
Haroldo Dantas, 47 anos, advogado
Eu tinha vinte e poucos anos e era fissurado em Surf e em Rock’n’Roll. Naquela época eram raros os shows bons aqui na terra brasilis, então, quando pintava um, não dava para perder. Quando ouvi as primeiras notícias da realização do Rock in Rio, a adrenalina subiu. Em seguida vieram as notícias acerca das bandas que iriam tocar… Aí, meu, comecei a reservar grana para a compra do ingresso e acho que fui um dos primeiros a comprar.
Mas a grana era curta, então só deu para comprar cinco dias. Escolhi os cinco primeiros porque eram os que iriam ter os shows que eu mais gostaria de assistir (Iron Maiden, AC/DC, Queen, Scorpions, Whitesnake, Nina Hagen, B52’s… os shows brasileiros eram lambuja). Estadia não era problema, tenho uma tia no Rio e costumava ir sempre para lá surfar com uns amigos.
Depois da compra do ingresso veio aquele período tenso da espera. Meu, o tempo não passava. No banco onde trabalhava, esquematizei tudo para tirar férias em janeiro. Tudo certo… as férias chegaram. Arrumei as minhas tralhas, barraca, prancha de surf e despenquei com um amigo surfista para Saquarema. Lá fiquei do dia 1º. até o dia 9 de janeiro, acampado na Praia de Itaúna.
Nessa passagem tem uma história legal. No terceiro dia chegou na praia um coroa muito gente boa e acampou com o neto. O cara era daqueles que tem de tudo para acampamento dentro do carro uma TL*, vai vendo. Só que numa noite a gente tava lá jogando baralho e conversa fora, e aí falei que iria embora no dia 9, para o Rock in Rio. Meu, daí o Tiozinho fez de tudo para me convencer a não ir no festival… foi no carro e pegou um livro de profecias, acho que de Nostradamus, onde estava escrito que na primeira metade da década de oitenta, quando os homens pássaros sobrevoassem a cabeça do gigante, haveria, numa cidade da América do Sul, um grande festival que reuniria centenas de jovens, e que aconteceria uma grande tragédia com a morte de milhares.
Putz, meu, o negócio era punk, as explicações, mais punk ainda. Ele disse que a cidade era o Rio de Janeiro, o festival era o Rock in Rio, que os homens pássaros sobrevoando a cabeça do gigante seriam os pilotos de asa delta sobrevoando a montanha que, vista da Barra da Tijuca, parece com a cabeça de um gigante adormecido (tava tudo certo… tudo batia…). Mas, mesmo diante das “evidências”, eu falei para ele que não tinha como. Se tivesse que morrer, eu morreria assistindo o festival. E no dia agendado voltei para o Rio e me instalei na casa da minha tia, na Penha.
Estudei o itinerário, ônibus etc… tracei a estratégia e logística para agüentar os cinco dias e… lá estava eu aguardando a abertura dos portões. Fui um dos primeiros a entrar, mas na entrada me fizeram jogar fora todos os meus lanches e bebidas preparados com carinho pela minha tia. Não podia entrar com nada, tinha que consumir lá dentro… Mas como consumir sem dinheiro? Naquela altura eu só tinha dinheiro para o busão. Passei um perrengue do caralho no primeiro dia.
Acho que o primeiro show começou umas quatro horas. Ney Matogrosso. Em um dia em que ainda iriam tocar Iron Maiden, Scorpions e AC/DC. A paulistada invadiu o Rio de Janeiro, era paulista para todo lado, até dormindo em cima de árvore do lado de fora da arena. Penso que 80% do público do primeiro dia era formado por paulistas rockeiros. E quando o Ney entrou, fantasiado de pavão, rolaram vaias, pedras etc (parecido com o que aconteceu com o Carlinhos Brown no Rock’n’Rio II). Mas o cara foi foda, não se abalou, segurou a bronca, começou com aquela música que diz “Deus Salve a América do Sul…”
Foi engraçado… eu vi roqueirão inflexível olhar para o lado e dizer “caralho meu… olha a banda do cara!”. De fato, foi foda. O cara estava com uma banda pesadíssima, tanto que mandou o resto do show sem nenhuma objeção e no final eu vi neguinho pedindo bis (que ele não deu)
Nesse mesmo dia, entre os brasileiros, tocou também o Erasmo Carlos. [Ele] entrou todo de preto, cheio de correntes. Quando começou a primeira música “preciso acabar logo com isso…” [Sentado à Beira do Caminho], putz… acho que ele não acabou o show, foi feia a coisa… deu pena do cara.
Coisas que marcaram foram várias: o tamanho do palco… A qualidade do som (inimaginável para aquela época)… Os palcos em si (muito louco o que eles fizeram. Acabava um show, fechavam as cortinas, dava um tempo e quando abriam as cortinas era outro palco totalmente diferente do anterior… Até hoje não entendo como eles faziam aquilo).
Quando começou o primeiro show, aliás, a galera levantou para não sentar mais. Meu, das 16 às 02/03 horas da manhã em pé, no empurra empurra… foi foda. Chega uma hora que tu não aguenta. Fui lá para trás na hora do show do Queen… E foi a melhor coisa que eu fiz. A qualidade do som, lá de trás, era muito melhor do que ali no gargarejo… Mas eu só fui saber disso na hora que desisti de ficar lá na frente. [Estava] quebradaço. Não tive como ir no outro dia, estava totalmente sem condições. Dei o ingresso do segundo dia para um primo.
Os Shows que marcaram em mim, o do Ney Matogrosso (pela volta por cima que o cara deu), O do Paralamas, da Blitz, do Iron Maiden, do AC/DC, do Whitesnake, a abertura do Scorpions e do Maiden; os tiros de canhão do AC&DC; o Queen e o coro que entrou para a história: minha voz está lá gravada. É uma daquelas.
*TL é um dos modelos do Wolksvagen 1600, carro que recebe o apelido de “Zé do Caixão”
Com 12 anos, “queria ver mesmo só o B-52’s e ia embora”
Fernando Lopes, 37 anos, escreve no Rock ‘n’ Beats e também no Floga-se
Em janeiro de 1985, eu estava prestes a fazer 13 anos. Meu aniversário é em fevereiro. Seria impossível eu ir pro RIR com essa idade. Mas a minha sorte é que eu tenho um irmão dois anos mais velho, que ia fazer 15 anos em março. Nenhum dos dois poderia ir ao show desacompanhado – e nessa época nossa família tinha acabado de se mudar para São Paulo, depois uma década no RJ – portanto a gente passava quase todo final de semana na capital fluminense: ou meu pai pegava a Brasília zero dele e tomava a Dutra com todos no banco de trás (tinha outro irmão, mais novo, mas esse não pôde ir ao show, porque só tinha 9 anos à época), ou a gente subia num Electra (sim, sou velho) e parava lá no Santos Dumont.
Como meu pai ia pra rever amigos e jogar bola e encher a cara com os parças, precisava de alguém pra cuidar da gente. E foi nessa que a gente se deu bem: a gente sempre ficava na casa de um tio meu, em Ipanema, e ele ficou de nos levar. Mas o cara era um dos mais cachaceiros da turma e acabou que todos os amigos do meu pai resolveram ir com ele pra ver se ele não ia esquecer a gente por lá ou coisa que o valha.
Lembro vagamente dessas armações, porque era muito novo. A velharada é que me contou tudo em detalhes depois, quando eu já tinha vinte e tantos – e era sempre a mesma história, em cada RIR que fui, eles relembravam isso.
Enfim, a sorte nossa foi que esse tio cachaceiro queria nos levar – e por preocupação, meu pai foi junto e mais uns amigos dele. É preciso lembrar que Jacarepaguá é longe pra diabo de Ipanema – e naquela época era mais ermo ainda, embora a estrutura da cidade já tivesse chegado lá – ou seja, tínhamos que ir de carro com alguém. O fato é que todos foram, deixaram a gente na entrada, se responsabilizaram, e VAZARAM: foram beber num bar ali perto, na Barra, é mole? As crianças ficaram sozinhas – o que pra gente foi lindo, maravilhoso!
Foi sorte porque em 1984 foi uma tragédia em termos escolares lá em casa. Eu e meu irmão, ao mesmo tempo, repetimos de ano. Bomba geral. E não contamos nada pro meu pai até ele comprar os ingressos pro RIR. A gente sabia que ele não ia deixar a gente ir, que ia rolar um castigo e tals. Quando contamos, ele ficou puto, é claro. Não queria deixar a gente ir.
Mas com esse lance do meu tio, acabamos indo. Mas só um dia. Nos outros que a gente até iria, não rolou. Até que tudo bem, porque eu e meu irmão queríamos muito ver B-52’s e Nina Hagen (não ria). O resto era lixo pra gente (na verdade, ainda é hehehe), inclusive o Queen, mesmo depois de ter “feito história” no primeiro dia – até porque a gente não imaginava que viraria história. Tanto que a gente falou que queria ver mesmo só o B-52’s e ia embora.
Teve um monte de lixo aquele dia. Se não me engano, Lulu Santos, Kid Abelha, sei lá o quê. Com meu pai puto com o lance da escola, combinou um horário e veio pegar a gente. Vimos o B-52’s (e nem foi inteiro) e vazamos. Ficamos de castigo o resto das férias. Mas já tinha valido a pena. Acho que meu pai ficou mais puto por a gente ter escondido o fato só pra ele comprar o ingresso.
Pra mim, com 12 anos, aquela estrutura toda era gigantesca. Tanto que até hoje eu acho que as coisas eram maiores do que eram realmente. O lance da Cidade do Rock, com aquele bocado de matérias toda hora aparecendo na TV, no jornal, aquilo criava uma expectativa imensa. Era um lance de querer participar – sentimento que carrego até hoje nos festivais que vou: quero participar, mesmo que seja uma merda o line-up ou a organização (leia SWU, por exemplo). Aliás, todo mundo queria participar. E meus pais sempre foram muito liberais, então da nossa turma fomos os únicos autorizados a ir. Nossos amigos todos ficaram só na vontade. Que eu me lembre, da minha idade, fui só eu e meu irmão mesmo.
A sensação boa foi essa: uma sucessão de travessuras (do meu tio; nossa, ao repetir de ano e não contar; a do meu pai de deixar a gente sozinho no show; etc.) que fez com que tenha sido inesquecível, porque do show mesmo não lembro quase nada. Aliás, temo que, pela pouca idade, minha memória confunda o que eu realmente vi com o que eu vi em vídeos anos depois, na TV e tals (aliás, de castigo, vimos o do RIR todo pela TV).
“Eu nunca quis voltar nas edições seguintes, queria reservar a memória do Rock in Rio original”
Ney Motta, jornalista, autor do blog Veia Cultural
Estava com 19 anos. Eu e um grupo de amigos (de infância) curtíamos Deep Purple, Led Zepellin, Black Sabbath, AC/DC, Ozzy, Kiss, Iron Maiden, etc. Foi um momento muito especial para todos nós. Uma oportunidade de conferir ao vivo o som de algumas das bandas que estávamos acostumados a ouvir apenas no toca discos. Lembro-me até hoje da ovação do público quando um técnico para testar o som tocou alguns acordes de Smoke on the Water do Deep Purple. Foi incrível. A Cidade do Rock era uma arena gigantesca com um público o mais diverso que se pode imaginar. Havia desde a “turma da pesada” até casais de namorados. Foi o encontro de tribos mais pacífico que já presensiei até hoje.
Eu estava lá, no histórico 11 de janeiro de 1985. Cabelos compridos além dos ombros – um amigo dizia que eu parecia com ao Adrian Smith, guitarrista do Iron Maiden -, camisa preta, calça jeans com desenhos de nomes de bandas de heavy metal e um bracelete de couro com pirâmides de metal, feito especialmente para a ocasião, que logo foi apreendido por um segurança mais exigente. Depois que entrei vi dezenas de pessoas com braceletes bem maiores e no lugar das piramidezinhas inofensivas, enormes tachinhas, no melhor estilo Judas Priest. Estavam comigo os meus amigos de infância: Ricardo, Marcelo, Gilson, Eduardo, Gilberto, Maurício e… o seu Nelson, pai do Marcelo, que para não negar o ingresso ao filho, com a desculpa de querer assistir ao show do Ney Matogrosso, acompanhou a gente. Nós estávamos entre as 300 mil pessoas que acompanharam o primeiro dia de evento.
Pelo que lembro chegamos antes do almoço, muito cedo para uma programação que começaria ao anoitecer. Fomos uns dos primeiros a chegar e já tinha uma turma bem mal encarada por ali. Eu não me lembro de ter visto pessoas se drogando ou brigas.
Ney Matogrosso abriria o evento. Eu previa uma vaia estrondosa de todos os metaleiros que estavam ali para assistir ao Iron Maiden. Num determinado momento um técnico de som ao passar de um baixo brincou de tocar o signo de Smoke on the Water e quase que o chão se abriu, num urro de alegria dos metaleiros. Algumas horas antes do início do evento, o Erasmo Carlos desistiu de se apresentar, provavelmente porque viu um monte de gente com cara de tremendão, e os alto-falantes disseram que ele não se apresentaria naquela noite para homenagear não me lembro quem em um outro dia. Foi um reboliço geral, ao mesmo tempo que vaiavam ele, gritavam como vitoriosos. Quando o Ney subiu no palco, cantou a primeira música. Trocou de roupa lá mesmo no palco, cantou a segunda, a terceira e daí em diante e a galera respeitando ele, eu pensei mas não é que nós metaleiros somos muito educados mesmo. O Pepeu Gomes entrou para fazer um show pra lá de pesado, foi ao limite com a sua guitarra, tocada até aos dentes e a galera se amarrou. Logo após viria a incógnita da programação, o Whitesnake, que substituía o Def Leppard, que seria uma das grandes atrações do evento. Se não me engano foi nesta época que o baterista daquela banda perdeu um braço e desistiu de vir ao Brasil. Resultado, o Whitesnake de David Coverdale fez um show antológico. Depois deles o mais esperado, Iron Maiden.
Naquela época eu tinha todos os discos do Iron Maiden. No meu grupo de amigos a gente fez um pacto, cada um escolheria uma banda e teria tudo dela, assim a gente poderia curtir a discografia de muitas bandas. Foi uma ótima ideia para um grupo que não tinha lá muito dinheiro no bolso.
O palco do Rock in Rio era triplo e com um sistema giratório. Enquanto uma banda tocava, os equipamentos e cenário da seguinte eram montados e a anterior desmontada. Foi assim que a gente viu surgir diante de nós a capa do Powerslave, o disco recém lançado da banda. Foi incrível, mas confesso que o show não me empolgou, apenas estava emocionado de ver meus ídolos. E quando a gente já estava satisfeito e ficaria mais um pouco apenas para curtir um sonzinho do Queen, uma lua inacreditável clareou o céu que pouco antes estava com nuvem carregadas e iluminou 300 mil pessoas que se estasiavam com o show da banda do Fred Mercury. Foi o show mais incrível que eu assisti na minha vida e quem estava lá até hoje diz a mesma coisa.
Não preciso dizer que saímos da Cidade do Rock exaustos. Andamos pra caramba para pegar um ônibus que nos deixou na Praça Seca e de lá como não haveria ônibus para voltar, andamos até Vila Valqueire. Já era dia quando chegamos em casa, resmungamos alguma coisa pra dar um até amanhã e eu desabei na cama para acordar sei lá a que horas foi.
Bem, mas pra mim ainda não havia acabado. E nem para o meu grupo de amigos. Nós retornamos no dia 19 para assistir nada menos do que Ozzy, AC/DC, Scorpions e novamente o Whitesnake e o Pepeu Gomes. Mas nos dias anteriores choveu muito e quando chegamos ali parecei que a profecia ia se realizar. 250 mil pessoas, o segundo maior público, ficava ilhada aqui e ali por enormes piscinas d’água e lama. E a chovia muito. Me lembro de um fato engraçado, enquanto Ozzy cantava, derrepente eu olhei para um lado onde não havia niguém, apenas uma piscina d’água, pois bem, dali inacreditavelmente um corpo que estava deitado, submerso aos meus olhos pelo menos, se sentou, levantou e saiu andando. Neste momento eu cutuquei o Edurado que estava comigo e mostrei o cara dizendo War Pigs. Do outro lado, dois caras bêbados que rodeavam um casal até que depois de muito observar começaram a gritar “tá segurando o pau dele, tá segurando o pau dele”.
Mas voltando um pouquinho ao início deste dia. No primeiro dia a gente assistiu ao show muito atrás de onde queríamos, então desta vez a gente entrou na muvuca e ficou bem perto do corredor da técnica porque ali a gente pensou “aqui ninguém fica na frente da gente”. Isso durou até o show começar. Foi um empurra, empurra tão grande que a gente começou a ficar imprensado pelas centenas de pessoas que estavam atrás. E aí a gente resolveu que iria pular o cerco e passar para o outro lado. Pular foi fácil, mas o segurança que estava do outro lado não deixou a gente atravessar, daí a gente que achava que estava na frente fomos lá para trás. E o grupo ficou mais ou menos assim: Eduardo e eu, nos separamos do Gilson, Marcelo, Ricardo e Gilberto, e todos se separaram do Maurício que era o caçula da turma. Pior do que isso, ele estava com toda a nossa comida. Bem, ninguém sabia quem estava com quem e a nossa tranqüilidade era em pensar que se os outros não estavam conosco, só podiam estar juntos. No final da noite ficamos sabendo que quase todo mundo se perdeu um do outro. Agora imagem, numa época em que não existia celular, em uma área alagada pela chuva e no meio de 250 mil pessoas era possível nos reunirmos novamente? Claro que não, né?! Pois não é que no final daquela noite todos nós nos encontramos um a um. Até aparecer sozinho o Maurício, com todos os nossos sanduíches intactos.
Foi neste Rock in Rio que o Paralamas do Sucesso se consagrou, que a Paula Toller com uma voz pequenininha foi escurrassada pela platéia, que a Blitz incendiou a platéia e que James Taylor foi um dos nomes que animou os mais velhos e encantou os mais novos.
Eu nunca quis voltar nas edições seguintes porque queria reservar em mim a memória do Rock in Rio original. Na realidade NUNCA MAIS, NO BRASIL, HOUVE UM FESTIVAL COMO AQUELE, TALVEZ NUNCA MAIS AJA.
Infelizmente nas minhas mudanças eu terminei perdendo os ingressos, revistas, cartazes, fotos etc. Mas não preciso deles, pois está tudo registrado na minha memória.
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