Penso nisso enquanto, no Morumbi lotado por 90 mil pessoas, vai chegando ao fim um megaespetáculo. Viagem cênica impactante, suntuosa, impecável, a do U2 360º.
Do som, da música que cria a banda irlandesa, há quem diga maravilhas e há quem só encontre bobagens, como é natural, mas o megaespetáculo permite outras formas de se ver e ler.
De Bono e da banda o mesmo, "oportunismo", já se dizia quando ele e Pavarotti recontaram e cantaram Miss Sarajevo, lá pelos anos 90, tempos dos massacres nos Bálcãs:
- (...) Existe um tempo para correr para os abrigos, um tempo para beijos e confissões (...) Existe um tempo para ser uma bela rainha. Lá vem ela, a mais bela recebendo a coroa (...).
Então diziam, e continuaram dizendo quando Bono estava - está - na África com flagelados da Aids, na Birmânia, pela liberdade da ativista dos Direitos Humanos Suu Kyi, ou com Nelson Mandela.
As imagens se sucedem ciclopicamente no telão do 360º e o eco dos sempre renovados ataques às posições de Bono impõe uma reflexão.
Cada vez mais encontra ressonância no mundo dos que não têm outra causa além do hedonismo a percepção negativa em relação a quem se engaja politicamente. Longe de lembrar velhos embates entre engajamento ou não nas artes, o que U2 360º propositalmente instiga, cobra do espectador, é o tomar - ou não - posições no cotidiano, no viver.
Num certo Brasil, em ilhas desse Brasil afora, por exemplo, pega bem, cada vez mais, o engajamento no não-engajamento político.
Atitude esta, a do engajamento no não-engajamento político, emoldurada por sorrisos sardônicos, um jeitinho blasé e sobrolhos e olhares de desprezo ou pena para aquela ou aquele que se "engaja".
Detalhe importante: rejeição àquele ou àquela que se engaje no que não foi convencionado ser passível de engajamento.
Com ingresso, na média, a R$ 300, podendo chegar a R$ 820 na RED Zone (dinheiro destinado ao Fundo Global de combate à Aids na África), muitos desse mundo, o de caras e caretas, estavam no Morumbi. Em delírio, aplaudiram Bono e seus discursos no sábado 9 e no domingo 10 de abril.
Aplaudiram até, imaginem, quando Bono disse que o mundo, outro mundo, acompanha e torce pela "ascensão do Brasil" e quando falou sobre sua visita a Dilma Roussef.
Condescendente, o Bono, como também o foi Barack Obama? Pode ser, mas não é o que aqui está na tela.
No megaespetáculo cênico, 888 painéis de LED em forma hexagonal criam um telão pantográfico de 3.800m² quando descerrados e conectados. Do meio para o final do show, o telão em forma cônica desce até o palco e ora engole, ora expele, Bono, The Edge, Adam Clayton e o baterista Larry Mullen Jr.
Quem vende o U2 360º diz que Bono, ocupado em "democratizar" o espetáculo, um dia em Honolulu mostrou com quatro garfos sobre um prato a "Aranha" que imaginava como palco.
Aranha posta não numa ponta dos estádios, como são os palcos italianos, mas erguida quase no centro do gramado, de forma a permitir a visão em 360 graus. E assim se fez.
E assim é no show, no palco de 400 toneladas e com "leitura" desde qualquer parte do estádio. A leitura mesma, do que diz Bono, se dá com a tradução nos telões. Desta forma, além dos inevitáveis "Alou San Paulo" e "eu ama a Brazil", todo o público pode saber tudo que diz o líder do U2.
Mas não apenas. Aquela coisa tão significativa, e tão ridícula, denominada "espaço VIP", com a banda e Bono tem outro sentido: ao redor do palco, colados, ficam os 2.800 fãs que primeiro chegarem ao estádio. E, em outro anel em volta destes fãs, os que pagarem mais caro e contribuírem para a humanitária Red Zone.
É chavão dizê-lo, mas a Arte realmente toca as pessoas. Toca no que quer que elas tenham dentro de si, no que quer que sejam. A meu lado e logo acima, um grupo de mineiros e cariocas. Pelo que diziam entre si, simpatizantes de Jair Bolsonaro, o neo-old-fascista.
Tocados pelo mega, pelo palco-aranha de 400 toneladas e mais alto que o estádio do Morumbi, engolidos pela profusão de luzes, tecnologia e som que se tornam arte, os adeptos do bolsonarismo aplaudiram, freneticamente, o discurso do líder anti-apartheid Desmond Tutu, o negro bispo sul-africano.
Tocados, engolidos pelo megaespetáculo e seus efeitos, sem nem mesmo saber do que e de quem se tratava, os fãs de Bolsonaro saudaram o discurso de Bono sobre a luta de Aung San Suu Kyi, a ativista birmanesa que ficou 20 anos em prisão domiciliar por defender a democracia.
Todas as luzes apagadas. Nos telões, os nomes das vítimas da chacina em Realengo. A pedido de Bono, dezenas de milhares de celulares, de telas acesas. O adeus da multidão com suas velas eletrônicas.
Um adeus num mundo onde tudo se faz presente a um só tempo e está ali, nos telões do megamanifesto do U2 360º: Birmânia, Líbia, Palestina, África, Sarajevo... e Realengo.
(foto: Ronaldo Aguiar/Especial para Terra)
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